O Brasil vive um paradoxo urbano. Em meio à crise climática, combustíveis caros e promessas de mobilidade sustentável, carros e motos seguem liderando o deslocamento diário da população. Segundo dados recentes do Censo 2022 divulgados pelo IBGE, mais de 42% dos trabalhadores do país optam pelo transporte individual para cumprir a jornada entre casa e trabalho. No ABC Paulista, essa tendência se consolida: 36,75% usam carro e 6,04% preferem a moto, contra 30,51% que utilizam ônibus e apenas 6,42% que se locomovem por trens ou metrôs.
Na prática, isso significa que, mesmo enfrentando congestionamentos diários, custos de manutenção, combustível, estacionamento e riscos de acidentes, grande parte da população ainda vê no veículo particular uma solução mais viável — ou menos desgastante — do que o transporte coletivo.
Tempo perdido no caminho
O número de brasileiros que enfrentam trajetos longos e cansativos também impressiona. Só na região do ABC, quase metade dos trabalhadores leva entre duas e quatro horas por dia apenas no deslocamento casa-trabalho-casa. Uma realidade que consome não apenas o tempo útil de descanso, mas também a energia física e mental de quem depende da mobilidade urbana.
Mais de 28% gastam até uma hora só na ida, enquanto 18,34% ultrapassam esse tempo, chegando a duas horas ou mais. Não se trata apenas de um problema logístico, mas de uma questão de qualidade de vida, que impacta diretamente a produtividade e o bem-estar.
Transporte público: acesso limitado e desempenho abaixo do ideal
Por mais que haja campanhas e discursos incentivando o uso de meios coletivos, os dados revelam uma verdade inconveniente: o transporte público não tem conseguido oferecer um serviço à altura das necessidades do trabalhador brasileiro.
Ônibus superlotados, horários imprevisíveis, estações degradadas e sistemas de integração ineficazes são parte do cotidiano. Tanto que, para 13,5% da população, caminhar ainda é melhor que pagar por um serviço considerado lento, caro ou desconfortável.
A falta de confiança na eficiência do sistema público acaba empurrando boa parte da população para o volante — e a consequência é visível: mais veículos nas ruas, mais lentidão e mais acidentes.
A promessa não cumprida da bicicleta
Quando se fala em alternativas sustentáveis, a bicicleta costuma surgir como símbolo de mobilidade consciente. Porém, os dados mostram que a pedalada ainda está longe de ser a solução adotada em larga escala. No ABC, apenas 1,07% das pessoas utilizam a bike como meio de transporte principal para o trabalho.
A explicação vai além da falta de cultura ciclística. A estrutura urbana, pensada majoritariamente para carros, deixa ciclovias fragmentadas, sem conexão lógica entre bairros e centros comerciais. Isso sem falar nos riscos que ciclistas enfrentam no trânsito intenso e pouco amigável das cidades grandes.
Apps, táxis e mototáxis: participação mínima
Embora os aplicativos de transporte tenham ganhado espaço no cotidiano das metrópoles, sua representatividade como principal meio de deslocamento ainda é tímida. Táxis, mototáxis e apps somam menos de 1% dos deslocamentos para o trabalho, de acordo com os dados analisados.
Isso reforça o cenário em que a posse ou o uso próprio de um veículo ainda é visto como símbolo de autonomia, conforto e previsibilidade — mesmo com os custos atrelados.
O retrato de quem encara a maratona diária
A rotina de muitos usuários do transporte coletivo revela uma jornada quase tão exigente quanto o próprio expediente de trabalho. É o caso de Vagner Cipriano de Alencar, morador de Ribeirão Pires, que todos os dias cruza a região para chegar ao serviço em São Bernardo. No total, são cerca de três horas por dia dentro de trens e ônibus.
Mesmo assim, Vagner ainda prefere enfrentar a superlotação do transporte coletivo a encarar o trânsito parado em um carro particular. Ele destaca que o cansaço acumulado da dupla jornada — trabalho e transporte — impacta diretamente sua vida pessoal, reduzindo o tempo para descansar, conviver com a família ou se qualificar profissionalmente.
Carros e motos: conforto ou falta de opção?
Para muitos, a escolha pelo carro ou pela moto está longe de ser um luxo. É uma resposta direta a um sistema público que falha em entregar qualidade, regularidade e eficiência. Motos, por exemplo, têm se tornado opção popular em regiões periféricas e entre trabalhadores autônomos, principalmente pelo baixo custo de aquisição e manutenção.
Por outro lado, a alta taxa de acidentes envolvendo motociclistas, inclusive com vítimas fatais, revela o outro lado da moeda de uma escolha forçada. O automóvel, embora mais seguro, também não escapa dos altos custos, tanto na compra quanto na manutenção e uso diário.
Um modelo que insiste em girar
O Brasil ainda é um país onde a mobilidade gira em torno do carro. As cidades foram construídas priorizando o transporte individual, e isso se reflete não apenas no trânsito, mas no orçamento público e nas prioridades políticas. Mesmo quando há investimentos em sistemas como trens, VLTs ou corredores de ônibus, a lentidão nas obras e a falta de continuidade dos projetos dificultam a adesão em massa.
Assim, enquanto não houver uma transformação profunda na lógica da mobilidade urbana brasileira, carros e motos continuarão sendo a escolha de 4 em cada 10 brasileiros — não por preferência absoluta, mas porque, entre os caminhos possíveis, muitas vezes são os únicos viáveis.



